A Pandemia silenciosa
- José Carlos Aquino de Campos Velho

- 19 de mar. de 2024
- 4 min de leitura
"Quando o interesse diminui, com a memória ocorre o mesmo."
Johann Goethe
O Brasil vive uma situação epidemiológica singular. A par da transição demográfica e epidemiológica, associadas ao processo do envelhecimento da população e a maior prevalência de doenças crônicas não transmissíveis, que implicam em novas políticas públicas relativas às necessidades das pessoas mais velhas, tanto do ponto de vista social como às questões específicas da atenção à saúde, convivemos com uma alta prevalência das chamadas Doenças Negligenciadas e (pelo menos) 2 epidemias: a da Dengue e a Covid-19.
A Dengue
A Dengue é uma enfermidade que não é acompanhada pelo silêncio. Surgida no Brasil há cerca de 4 décadas, espalhou-se pelo país inteiro de forma vertiginosa. Trata-se de uma arbovirose, transmitida pelo mosquito Aedes aegypti , uma doença potencialmente grave, que cursa com um percentual de casos de manejo difícil e complexo e que pode levar a morte. Embora possa ser assintomática, a maioria dos casos é barulhenta: febre alta, dor de cabeça de forte intensidade (“atrás dos olhos”), dores articulares, intensa fraqueza e mal estar, lesões cutâneas e os temidos fenômenos hemorrágicos.
Refrescando a memória
Porém, eu gostaria de conversar sobre outra doença. A COVID-19. A Pandemia pelo Novo Coronavírus eclodiu na China no início de 2020 e em março foi declarada Pandemia pela OMS. Quem viveu este período da história certamente não vai esquecê-lo tão cedo. A face do mundo se transformou. As portas de fechando. Milhões de pessoas adoecendo, ao mesmo tempo, no mundo inteiro. Os casos graves. O despreparo técnico e institucional. As mortes. O caos. A busca acelerada – quase desesperada – por possibilidades terapêuticas. A desinformação. A Infodemia. No Brasil vivemos problemas seríssimos em decorrência de uma gestão desastrosa da doença pelo mandante da época, cercado de negacionistas e ignorantes – e de médicos e pesquisadores-celebridades que insistiam em tratamentos ineficazes e solapavam como podiam medidas simples, como lavar as mãos, usar máscaras e manter distanciamento social – sempre oferecendo uma nova pílula mágica. E a pior atitude de todas, a mais sórdida e maléfica: o questionamento incisivo da vacinação – uma estratégia que mudou o jogo de forma cristalina e transparente. Tivemos milhões de casos da doença no Brasil. Centenas de milhares morreram. Crianças órfãos, famílias despedaçadas. Foi uma época muito difícil para todos. Não tenho dúvida em afirmar: fomos salvos pela vacinas. Desenvolvida em tempo recorde, baseada em tecnologias que já vinham em desenvolvimento há mais de uma década, as vacinas permitiram que, paulatinamente, a vida voltasse ao normal. O chamado Novo Normal.
A COVID-19 continua grassando
E a Pandemia arrefeceu. Arrefeceu. A expressão mais adequada me parece esta. Diferente da Dengue, ruidosa, a COVID está presente, em proporções muito além do que imaginamos. E é silenciosa. Manifesta-se, na maior parte das vezes como uma infecção respiratória banal: “um resfriadinho. Uma gripezinha”. Tenho trabalhado em serviços de emergências em pequenas cidades na região central do Rio Grande do Sul, nestes últimos meses. Todos os dias que trabalho, faço diagnósticos de Covid-19 ou atendo pessoas que estão com a doença já diagnosticada ou que a tiveram recentemente. Porém, diferente da época em que estávamos no olho do furacão, as medidas de evitação da contaminação são pouco regulares e mesmo fragmentárias – inclusive entre os profissionais de saúde. No momento não existem políticas institucionais que sugiram o uso protocolar de medidas protetoras no âmbito coletivo – tanto no que se refere à profissionais da saúde como aos usuários.
Neste domingo, 17 de março de 2024, atendi um paciente internado em um pequeno hospital. Este paciente havia sido visto por inúmeros profissionais (médicos, enfermeiros, nutricionistas, pessoal de apoio) e visitado por vários familiares. Havia sido avaliado no serviço Ortopedia do hospital de referência, por encontrar-se no pós-operatório de uma fratura de fêmur, poucos dias antes. Nesta ocasião ele foi removido por ambulância. Tratava-se de uma pessoa idosa, internado há alguns dias na instituição, com múltiplas comorbidades, que evoluía um quadro respiratório, atribuído à uma descompensação infecciosa de uma doença pulmonar crônica. O paciente apresentava piora progressiva, apesar da terapêutica adotada. Optou-se para sua transferência para uma UTI em outro hospital, em uma cidade próxima. Por sugestão do intensivista, foi solicitado teste rápido para Covid-19. O teste veio positivo. Talvez o paciente tenha se contaminado na instituição, após receber uma visita que apresentava sintomas respiratórios. Esta situação representa um enorme potencial de disseminação do vírus. Todos correm risco de adquirir a doença. Devido à vacinação os quadros podem não ser graves, mas em se tratando de um vírus altamente mutagênico, a incerteza continua presente no que tange à eventual gravidade da doença. Fiquei pensando se o uso de precauções universais (máscaras, lavagem frequente das mãos) não passa a fazer sentido, em tal situação epidemiológica. Estamos lidando com uma baixa cobertura vacinal, determinada pela hesitação insuflada pela mídia por políticos inescrupulosos, e disseminadas exaustivamente nas redes sociais.
Antes prevenir do que remediar
Será que, em não havendo uma orientação vertical (uma determinação da vigilância sanitária para uso universal de máscaras, por exemplo, em estabelecimentos de saúde), não valeria a pena considerarmos decisões individuais? Lembrando duas coisas: a única proteção real é com máscaras N95 (que parecem esquecidas). E que, além da possibilidade dos médicos ficarem doentes e necessitarem de afastamento de suas atividades, eles também são vetores para a transmissão da doença - isso vale para todas as pessoas que trabalham cotidianamente em serviços de saúde. Não deveríamos testar para COVID, novamente, todos os pacientes que internam nos hospitais? Trata-se de uma questão coletiva. A proteção do outro.
Vacinem-se, por favor
Uma última questão trata da vacinação. Creio que os médicos – e profissionais de saúde - deveriam considerar a possibilidade de vacinarem-se com a vacina bivalente, se indicada, tão logo que possível. E quem está com o esquema vacinal desatualizado, vacinar-se. Reafirmo que a hesitação vacinal tem sido alimentada de uma maneira irresponsável, decorrente claramente de posicionamentos políticos e ideológicos, não baseados em evidências científicas, com intenções espúrias de angariar prestígio, verbas e votos. A Pandemia pelo COVID-19 ainda está mordendo nossos calcanhares. Será possível que tenhamos aprendido tão pouco? Será possível que nossa memória seja tão curta?





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