A Pediatra
- José Carlos Aquino de Campos Velho

- 3 de abr. de 2024
- 2 min de leitura
"O mundo está farto de ódio."
Mahatma Gandhi
Cecília é uma pediatra bem sucedida. Formada em uma escola médica de primeira grandeza, filha de um médico superespecialista - um endocrinologista pediátrico que se especializou em cuidar de crianças portadoras de diabetes... e de suas mães. Cecília, porém, tem uma característica pouco habitual em pediatras - ela não gosta de crianças, nem de doentes. Ela não gosta de ser médica. A palavra ódio não chega a ser um exagero.
Especialista em Neonatologia, ela é tecnicamente competente: faz o que deve ser feito, de maneira segura e tranquila. Recebe os bebês de uma obstetra bem conceituada de São Paulo e atende casos simples em seu consultório. Não tem nenhuma paciência com doentes crônicos ou situações mais complexas. Encaminha as crianças para os especialistas diante de qualquer dificuldade. O pai representa o contrário: afetuoso, cuidadoso, disponível. Mães de crianças com diabetes demandam muito orientações médicas e se informam sobre a doença - o pai explica tudo minuciosamente, sobre diagnósticos, tratamentos e expectativas. Cecília as chama, pejorativamente, de mães-pâncreas.
A medicalização da gestação e do parto
Na primeira parte do livro, parece que o foco da narrativa vai ser relativo à questões biomédicas. Sem muito esforço, percebe-se que a obstetra não tem grandes pruridos no que tange ao grande número de cesáreas que executa. Sabe-se que o índice de cesarianas no Brasil é alarmante. O livro não se propõe a nenhuma discussão neste aspecto, fato que chega a causar certo desconforto. Não é este o objeto do livro. A humanização do parto é vista de maneira jocosa e pejorativa por Cecília. Mas é nesta brecha que surge um concorrente que tem uma postura mais liberal em relação ao parto, à presença de doulas no acompanhamento da gestação e na sala de parto e a possibilidade de olhares não convencionais ao ciclo gravídico-puerperal. Estas estratégias abrigam-se dentro de um olhar mais humanizado para a gravidez e o nascimento e podem ter surgido pela tecnologização e medicalização cada vez maior destes fenômenos, abordados atualmente quase como se se tratassem de patologias. A frieza e o distanciamento dos médicos, uma capacidade precária para o diálogo, para a compreensão dos valores da mulher grávida e para o compartilhamento de decisões gerou um espaço vazio que acabou sendo ocupado por outros profissionais - e curiosos - que poderiam contribuir positivamente - ou negativamente - neste momento tão significativo da vida. Cecília, por certo, não se agrada de nada disso.
A vertigem
Porém o livro vai aos poucos se distanciando das questões médicas e vai se aproximando da vida pessoal da pediatra. E a trama vai se condensando cada vez mais, em uma espiral de insanidades, relacionamentos abusivos, traições - um enredo tecido de mentiras e desprezo pelas relações humanas.
A dra. Cecília não representa nenhum médico em particular, mas provavelmente um mosaico de várias pessoas. O leitor provavelmente identificará características de um ou outro médico, real ou imaginário, na figura cruel da pediatra. Vale a leitura. Andrea Del Fuego (pseudônimo de Andréa Fátima dos Santos) , a autora , é filósofa, paulista e vencedora do prêmio José Saramago, com o romance "Os Malaquias".



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