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Existe espaço para ternura na relação clínica?

"O homem que não conhece a dor, não conhece a ternura da humanidade."


Por João Antônio Biacchi Vione:


A relação entre médicos e enfermos tem passado por uma mudança de paradigmas nas últimas décadas. Observamos uma transição de um modelo paternalista, hierárquico, do paciente como sujeito passivo, para uma relação mais horizontal e cooperativa, onde o paciente é sujeito de si e de suas decisões. Antigamente havia um modelo de médico como um solitário comandante, sisudo..... Afortunadamente, hoje vigora a noção de uma equipe multidisciplinar, interprofissional. Há também uma transição no modelo de ensino, outrora hospitalocêntrico, lastreado estritamente em ciências biológicas e valores quantitativos, onde se priorizam as doenças raras, e o indivíduo é visto como um conjunto de aparelhos e sistemas, enfim, um portador de doenças. Com a Política Nacional de Humanização (PNH) e o modelo biopsicossocial de saúde, se promovem novos valores e, especialmente, se busca considerar o paciente de forma holística - em sua condição social, psicológica, econômica e cultural. A Relação Médico-paciente enquanto disciplina propicia espaço para refletir, justamente, a dimensão relacional e comunicacional do exercício da Medicina; uma escuta ativa é dimensão muito importante e determina boas anamneses e uma relação clínica fecunda.


Conceitos e valores

Fernández & Gérvas (2025) elaboram alguns valores para desenvolver a “ternura clínica”, em artigo homônimo. A ternura clínica nos “predispõe à ajuda, (...) e nos adaptarmos a quem nos necessita com a cordialidade adequada à situação (...) é o oposto da(...) frieza e indiferença (...) para dar a melhor resposta clínica possível” (idem, tradução nossa). Essa ternura se desenvolve com conceitos como cortesia, piedade, compaixão. Na cortesia, buscamos servir e agir pautados por uma etiqueta que torne o paciente confortável para se expressar, sendo tratado adequadamente para sua faixa etária. Uma consulta médica ou à beira do leito envolve uma situação de fragilidade, talvez subalternidade se pensarmos no antigo paradigma da relação médico-paciente. Há um medo de rejeição, de julgamento, ou de não ser entendido. Reconhecendo a delicadeza do contexto, agimos com o preceito da piedade: reconhecer o impacto do sofrimento no paciente e família. A compaixão, afetar e ser afetado, permite a piedade, permite formar uma conexão que, de certa forma, limite a sensação de rejeição e fragilidade. Adicionaria a estes, conceitos do psicólogo Carl Rogers (apud BERGER, 2014), quais sejam, espelhamento e validação - repetir o que o paciente expressa, fazer-se entender e dar-lhe suporte; apreço e “unconditional positive regard”, no sentido de valorizar o paciente. Considero que incorporar esses conceitos à prática médica contribuem para uma relação harmoniosa e cooperativa entre médico e enfermo.

Soft e hard tecnology

Tangencialmente remete aos conceitos de tecnologia leve, dura, leve-dura (tecnologia dura como exemplos da robótica, métodos de diagnóstico com tecnologia de ponta; tecnologia leve como a dimensão das relações humanas, e leve-dura como a concatenação e uso racional de ambas). Esta também remete a discussões conceituais nas Relações Internacionais, nominalmente, hard e softpower. Hard power sendo o uso da força e poderio militar, econômico, a coerção e ameaça à integridade de um país ou pessoa; soft power como poder do convencimento de outro a fazer o que você quer; ideologia, think-tanks, estabelecer modelos a seguir. Hard e soft power, sticks and carrots (porretes e cenouras). E o smart power que seria uma combinação de ambos. A relação médico-paciente e a discussão sobre tecnologia leve-dura confluem na conclusão de que investir na boa relação terapêutica é menos dispendiosa e gera mais resultados do que apenas o uso da tecnologia diagnóstica. A obra de Porto (2019) faz declaração similar, de que não há substituto e que o uso das demais tecnologias, em verdade, dependem de boa anamnese e exame físico, boa relação terapêutica. Sobre as Relações Internacionais, embora tivesse um viés de dimensões de poder, maquiaveliano, um viés mais político-institucional do que de relações de pessoa para pessoa (embora a condução pessoal/presidencial da política externa, por exemplo, venha sendo fator nas últimas décadas também), ajuda-nos a pensar a condução de emancipação do paciente e autodeterminação. Isto tudo dito, restam desafios à efetivação desse modelo, a despeito da PNH. Freitas et al (2022) discorrem que há dissonâncias nos currículos universitários e dos próprios professores que talvez não tenham tido essa formação, cabendo ao discente incorporar peças e pepitas do que observa na clínica de seus mestres. Também assinalam a reduzida carga horária de disciplinas humanas e humanísticas, frente à elevada demanda de disciplinas tecnicistas e das ciências biológicas; isso leva a aulas telegráficas, talvez superficiais, sobre a relação médico-paciente ("relação clínica", segundo, Diego Gracia). A baixa carga-horária deixa subentendida uma menor relevância frente às clássicas anatomia, técnicas cirúrgicas, semiotécnica e propedêutica, reforçando um certo desinteresse ou crer que a humanização ‘é fácil’, ‘já somos humanos’. Desafio ainda maior é desenvolver esse tato, etiqueta, humanização da prática médica no estresse e dinamismo do trabalho do aluno pós graduação, frente a plantões, atendimentos emergenciais e outras prioridades de vida pessoal.

A humanização da prática médica e as especialidades

Outra dificuldade notória é a especialização. Dr. Kevin Jubbal, criador do canal de YouTube Med School Insiders, se refere à graduação como estudar muitas coisas com pouca profundidade - muito chão com poucos centímetros de profundidade - enquanto a especialização são centímetros de extensão mas quilômetros de profundidade. A especialização é conducente ao tecnicismo e à perda da visão holística do paciente - cria-se um viés de analisar as doenças daquela especialidade e desconsideram-se demais fatores na vida e no organismo do paciente. Portanto, mais que incutir esses conceitos e valores, é preciso “aprendizado intersubjetivo e interdisciplinar, dando ênfase para a dimensão social" (ALVES et al., 2021,apud FREITAS et al, 2022, p. 25307). Os autores sugerem atividades práticas, lúdicas e artes, como uma solução na graduação para implementação da humanização e desenvolver a relação médico-paciente, o que é uma abordagem que confere mais segurança quando o aluno atende a pacientes em reais situações clínicas.


Referências:

BERGER, Glenn. Phil Ramone & The Secrets of Vocal Production. Revista Sound on Sound, Reino Unido, Janeiro/2014. Disponível em https://www.soundonsound.com/people/phil-ramone-secrets-vocal-production. Acesso em 30de abril de 2025.


FERNÁNDEZ, Mercedes P.; GÉRVAS, Juan. Ternura Clínica. Primum non nocere 2025.

Disponível em https://rafabravo.blog/2025/03/18/ternura-clinica/. Acesso em 27 de abril de 2025.


FREITAS, Flávia G.; VIANA, Matheus L.; MEDEIROS, Alyne M. de B.; OLIVEIRA, Rúbia C.. Relação médico-paciente: a importância de um atendimento humanizado. Brazilian Journal of Health Review, Curitiba, v. 5, n. 6, p. 25301-25310, nov./dec., 2022.


PORTO, Celmo C. Semiologia Médica. Rio de Janeiro: Ed. Guanabara-Koogan, 8ª Edição,


PS: Este artigo foi escrito por João Vione, aluno da Faculdade de Medicina da Universidade Franciscana - UFN / Santa Maria, RS, em comentário sobre artigos divulgados na disciplina de Relação Médico- Paciente

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