IA em Medicina: uma nova panaceia?
- José Carlos Aquino de Campos Velho
- 1 de jun. de 2024
- 4 min de leitura
"O que cada um de nós deve fazer em primeiro lugar, pois não temos outro remédio, é respeitar as nossas próprias convicções, não calar, seja onde for, seja como for, conscientes de que isso não muda nada, mas que ao fazê-lo, pelo menos temos a certeza de que não estamos a mudar."
José Saramago
Tenho visto muitas publicações, na mídia e nas redes sociais, sobre a revolução que a Inteligência Artificial (IA) vai trazer para a prática da Medicina. E creio que algumas questões são plausíveis, particularmente no que tange às tecnologias de registro de dados, aos exames complementares e suas interpretações, ao entrecruzamento de informações, enfim, um novo universo que se descortina e do qual pouco ainda podemos antever em sua magnitude.
Uma revolução na prática médica?
Mas a IA mudará a prática da Medicina? Transformará as relações de médicos e pacientes? Permitirá que, com os computadores assumindo funções hoje desempenhadas pelos profissionais de saúde, que estes disponham de mais tempo para interagir com seus pacientes? Auxiliará no monitoramento de condições clínicas, permitindo ações mais rápidas e efetivas caso observadas situações de risco que possam comprometer a saúde e representar riscos aos pacientes?
É provável que parte destas possibilidades aconteçam, e talvez muito além. Até transcendendo de longe o que acreditamos ser possível. A questão não está na tecnologia, mas no uso que fazemos dela.
Curar, aliviar e consolar
Minhas conjecturas são ancestrais. Qual a função da medicina: curar e salvar vidas? De certa maneira, sim. É uma visão romântica da Medicina. Na maior parte do tempo, médicos estão envolvidos em fazer diagnósticos, orientar pacientes e familiares, fazer relatórios, pedidos de exames, receitas. Interagir com a equipe multiprofissional. Idealmente, conversando, ouvindo, examinando os pacientes. Oferecendo tentativas de soluções em questões frequentemente incontornáveis, às vezes pouco eficientes. O tempo todo nos defrontamos com limites na medicina, tanto para situações clinicamente multifacetadas, como para situações socialmente complexas ou que afetam o psiquismo das pessoas, para o que podemos oferecer possibilidades, frequentemente aceitas apenas parcialmente - e de eficácia imprevisível, dependente de muitos fatores. A função da medicina torna-se curar, aliviar e consolar. E a cura, muitas vezes, tão esperada, é uma miragem.
Humano, demasiado humano
Já pensei na IA como em outras grandes descobertas humanas: a roda, a máquina a vapor, o telégrafo, a eletricidade, o telefone, os computadores, a comunicação quase irrestrita, na palma de sua mão. É provável que todas estas descobertas implicassem em uma ideia de revolução na vida cotidiana - e certamente foram. Mas também foram uma revolução nas relações humanas? Parece-me que somente em parte...
E é de relações humanas que falamos quando o assunto é prática médica, e a tecnologia pode modificar a forma como se estruturam as relações humanas, mas não sua essência. E neste aspecto, a IA pouco pode contribuir - eventualmente com recursos para informar melhor - no desenvolvimento do processo do cuidar, tarefa e atributo profundamente humano, que exige conexão entre pessoas. E conexão se faz pelo olhar, pela escuta, pelo toque, pela palavra. Infelizmente, o cotidiano do atendimento médico não se pauta por estas premissas: ao contrário, a pressa, contatos superficiais, relações pobremente estabelecidas são as facetas mais frequentes do atendimento médico.
E é na humanidade da atenção à saúde que a IA pouco pode contribuir. E como o contato humano permanece no cerne da prática médica, é de se interrogar se a presumida e esperada revolução dos cuidados efetivamente vai acontecer com a emergência da IA. Nossa tarefa, provavelmente, será integrar a IA em nosso cotidiano, buscando sempre o foco essencial da atenção médica: o paciente no centro do cuidado.
Esta é somente uma reflexão de quem pouca familiaridade tem com a IA. E posso estar redondamente enganado. O Tempo é o senhor da Razão. Esperemos o que o futuro nos trará. Se for para o bem, a valorização de profissionais de saúde e dos pacientes e para a melhoria da assistência, que seja bem-vinda a IA nas nossas vidas. Mas uma pitada de ceticismo sempre é algo saudável. A complexidade do cuidado não vai se resolver por um passe de mágica - mesmo permeada da mais avançada das tecnologias.
Uma fábula
Eu só acreditarei em IA quando fizerem um clone e eu mandar ele trabalhar no meu lugar. Vai ser mais ou menos assim.
"Bom dia! Muito prazer, doutor. Nossa, doutor, como o senhor é parecido com o dr. Fulano. Ah, sim... e como o senhor está? Estou muito bem, graças a Deus. Certo, certo. Mas o que o senhor veio fazer aqui? Veja bem, doutor, eu sou o clone do sr. Sicrano, e ele está passando muito mal e disse para eu vir aqui. Achou que era melhor não sair de casa.
Mas... o que ele estava sentindo? Ah, dor de barriga, parece. Foi o que ele me falou. Ah, vocês conversaram, pelo menos.... não, não, ele só me transmite os pensamentos. Essa história de conversa é muito antiga.
Está bem. Espera aí que eu vou conversar com o doutor. Ué, mas você não é o doutor? Não, eu sou o clone dele... É muito difícil conversar com o doutor. Ele sempre me manda para o ChatGPT e consultar a IA. Para conversar com ele só em casos muito especiais.
Nossa, mas você é mesmo parecido com ele, embora nunca o tenha visto. E você conversa sempre com o doutor? Não, nunca conversei. Na verdade eu nem o conheço. De tardezinha eu entro neste armário aqui e só me ligam no dia seguinte....
Para ser sincero, eu ligo automaticamente ás 8:00hs e desligo às 18:00hs.
Puxa, como a medicina avançou! É, avançou mesmo.
Mas então.... prá que as pessoas precisam de médicos? Sei lá, eles sempre existiram. Ninguém mais sabe direito."

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