Rastreamento de câncer e compartilhamento de decisões

"O grande segredo para a plenitude é muito simples: compartilhar."

Sócrates

O rastreamento de câncer é algo bastante controverso. A expectativa das pessoas é a existência de um exame que possa mostrar a elas não só a presença, mas a possibilidade de um câncer oculto - quase um sonho de consumo da humanidade. O câncer é uma doença que ainda é revestida de inúmeras expectativas negativas, apesar dos avanços da oncologia e da diferença entre os diversos tipos de cânceres. As pessoas imaginam o câncer com uma doença única e potencialmente fatal, uma ideia ainda muito presente. O câncer na verdade se comporta como múltiplas doenças com uma manifestação semelhante: uma desorganização dos tecidos orgânicos e biológicos que acaba comprometendo o órgão onde ele se inicia e se espalhando para outras áreas do corpo no processo conhecido como metastatização. Quando as metástases acontecem a probabilidade de cura se reduz significativamente. É portanto natural que as pessoas tenham um receio enorme sobre a doença, com uma expectativa e uma fantasia de que ela possa ser diagnosticada ou mesmo prevenida antes de causar qualquer malefício.

Prevenção e diagnóstico precoce do câncer

Há algum tempo a medicina vem buscando maneiras de você proceder ao diagnóstico de precoce do Câncer. Fala-se muito também em prevenção, havendo inclusive confusão entre o que é diagnóstico precoce e o que é prevenção. A verdade é que, exceto através de uma atitude de evitação de alguns hábitos como o tabagismo, o abuso de bebidas alcoólicas e a manutenção de um peso saudável, ou seja, um estilo de vida saudável é a melhor maneira de prevenir o câncer - falamos portanto de atividade física, alimentação equilibrada, repouso adequado e uma vida menos estressante, sempre que possível mantendo em contato com a natureza. O que é bom para o organismo como um todo é bom para prevenir o câncer. Já o diagnóstico precoce tem outra estruturação racional. Ele é dependente de cuidados médicos e infelizmente relativamente pouco eficaz quando pensamos em níveis populacionais. A maior parte das histórias de sucesso relativas ao diagnóstico precoce de câncer são individuais. Algumas se devem a estratégias específicas e outras puramente à sorte.

Os meses coloridos conscientizam mesmo?

Hoje existem os conhecidos meses coloridos, cujos primeiros representantes foram o Outubro Rosa e o Novembro Azul, relacionados à detecção precoce do câncer de mama e de próstata, respectivamente. Embora possa ser um pouco mais eficiente a realização periódica de mamografia para mulheres entre 50 e 75 anos, a cada 2 anos (é polêmico!) como forma de detecção precoce de câncer de mama existem controvérsias a respeito. Na Suíça, por exemplo, não existe uma política pública acerca do rastreamento do câncer de mama em mulheres saudáveis sem histórico familiar ou outros fatores de risco. Trata-se de uma decisão individual. No que tange à dosagem do PSA e ao toque retal para detecção precoce do câncer de próstata as evidências são ainda mais frágeis, embora socialmente sejam extremamente valorizadas. Aqui devemos chamar a atenção para a história familiar de câncer de próstata, em particular na raça preta. Algumas estratégias como a detecção precoce de câncer de cólon (no intestino), particularmente em pessoas provenientes de famílias onde a doença é prevalente, através da pesquisa de sangue oculto nas fezes ou de exames mais invasivos como retossigmoidoscopia e a colonoscopia tem várias evidências favoráveis e, bem como o uso de tomografia computadorizada de alta resolução em homens com histórico de tabagismo por volta de 60 anos. A algumas doenças vulnerabilizam a pessoa para o câncer, como por exemplo a cirrose hepática decorrente do abuso alcoólico ou de hepatite C, que aumentam a probabilidade de câncer de fígado ; radiações ionizantes e exposição pouco racional à agrotóxicos pode ter relação com cânceres sanguíneos. Devemos lembrar um tipo de câncer na mulher que é prevenível pela vacinacão contra o HPV (Papilomavírus humano) é o câncer de colo do útero, também detectável precocemente com o uso da colpocitologia oncótica (papanicolau) e tratável, com altas chances de cura, quando a detecção é precoce. O câncer de endométrio pode estar relacionado ao tratamento do câncer de mama, com algumas drogas que são antagonistas dos receptores do estrógenos. Falando especificamente do câncer de próstata o risco de se fazer o diagnóstico da doença em pessoas que não iriam ter consequências da doença existe e não é desprezível: os procedimentos para diagnóstico e a abordagem terapêutica podem não ser desprovidos de danos como prostatite, complicação de uma biópsia e incontinência urinária e disfunção sexuals decorrentes do tratamento cirúrgico; além de problemas urinários e intestinais pela radioterapia. Portanto é questionável o rastreamento do câncer de próstata em indivíduos com mais de 75 anos ou com uma expectativa de vida menor do que 10 anos.

Fique atento à sintomas persistentes

Boa parte dos cânceres causam sintomas e o indivíduo precisa estar atento a alguns sintomas. Dores persistentes, lesões de pele e de mucosa oral que não curam, sangramento intestinal, surgimento de nodulações, podem ser sinais de alarme e devem ser adequadamente avaliados pelo médico. Uma das questões importantes é que o avanço da oncologia, na grande maioria dos casos é observado quando procedido o diagnóstico de câncer, seja de uma maneira incidental ou mais raramente através de estratégias de rastreamento. Esses avanços permitem tratamentos mais eficazes e uma sobrevida mais longa com qualidade de vida, eventualmente com possibilidade de cura. Então é importante saber que não só o rastreamento modifica o curso da história do câncer mas também o seu tratamento adequado. Nos defrontamos diante de duas situações, portanto: uma é o rastreamento e diagnóstico precoce dos cânceres em geral e outra a instituição do tratamento adequado de cânceres diagnosticados após manifestarem-se clinicamente. Nesse aspecto a informação do público é importante, no sentido de esclarecer tanto as limitações das técnicas de rastreamento de câncer quanto a possibilidade de diagnósticos de falsos positivos, de sobrediagnóstico e sobretratamento, conceitos poucos conhecidos pelo público em geral. É quando a medicina faz demais e, ao invés de proteger o paciente, acaba provocando problemas. Um aforismo atribuído à Hipócrates diz que "em primeiro lugar não devemos causar mal e se estivermos em dúvida devemos nos abster de intervir". Portanto o rastreamento do Câncer do Câncer sensu lato deve ser realizado não de uma maneira pouco racional, mas envolvendo o paciente e seus familiares na discussão sobre riscos e benefícios e eventuais intercorrências que podem surgir na investigação.

Compartilhamento de decisões

Isso se chama compartilhamento de decisões: informar adequadamente o paciente sobre quais as expectativas que pode ter acerca de determinado procedimento, respeitando-se seus valores, suas decisões e seus desejos. Qual a maneira mais ponderada de se proceder à tomada de decisão acerca da realização de exames que possam contribuir para o diagnóstico precoce do Câncer? A incerteza é uma das tônicas da medicina e a vida pode se modificar a cada dia. Uma ampla avaliação por exames complementares não garante a não existência de um câncer ou que ele possa surgir em pequeno um espaço de tempo após esta investigação ("ele fez todos os exames , estavam ótimos, mas logo em seguida descobriram um câncer!...."). Fato que dá ao paciente uma falsa sensação de segurança porque todos os exames estavam normais. De nota é que a solicitação de marcadores tumorais em indivíduos saudáveis (Ca 15.3, Ca 19.9, CEA, Ca 123, Alfafetoproteína e outros) pode configurar má prática, não embasada em qualquer evidência científica. Estes exames servem como acompanhamento da evolução clínica de cânceres diagnosticados e tratados, cujos resultados eram positivos após o diagnóstico e antes do tratamento, servindo também para o acompanhamento evolutivo da doença.

Aliança terapêutica

Compartilhando decisões, criando uma relação terapêutica de confiança com o médico - uma aliança terapêutica - é o método mais seguro de se proteger da possibilidade relativa à uma doença potencialmente fatal E aí não falamos somente de Câncer mas de outras doenças que podem ser igualmente graves com importante comprometimento da qualidade de vida. O que podemos levar como uma mensagem para casa é de estabelecermos uma relação de confiança com o médico que acompanhe o paciente e levar uma vida saudável. Além de ser importante frisar que a pessoa pode ser ajudada de várias formas pela medicina moderna em havendo o infortúnio de ser diagnosticado com uma doença grave.